Há dias ouvi que num certo colégio
privado está proibida qualquer menção à revolução de 25 de abril de 1974. Proibidos
estão também os cravos, mesmo que noutro contexto. Para além de um profundo
sentimento de injustiça e perturbação que este caso me provocou, fui levado
também a reunir algumas reflexões sobre os motivos pelos quais a revolução dos
cravos inspira tanto incómodo em algumas pessoas. E, ao mesmo tempo, uma torpe
indiferença em tantas outras (talvez uma larga maioria). A propósito,
pergunto-me se os anémicos casalinhos burgueses que têm os seus filhos no tal
colégio, por vezes tão exigentes quanto à programação das festividades da
miudagem, alguma vez questionaram o facto de sistematicamente passar em branco um
acontecimento fundamental da nossa história, ainda bem recente. Infelizmente,
não creio.
E este caso liga-se, ainda que não
tão evidentemente, a algumas recentes manifestações de alguns quadrantes, que
vão ganhando uma ousadia que até há pouco tempo não tinham. Refiro-me a personagens
como Ulrich e o seu «aguenta, aguenta»; a Belmiro com a sua defesa dos salários
miseráveis (o que não inclui a si próprio nem aos seus gestores de «topo» -
expressão deliciosamente nauseante) e a apelidação de «carnaval» às manifestações;
Jonet e a sua preferência pela «caridade» em detrimento da solidariedade;
Borges e o seu atestado de «ignorância» a todos os que rejeitam a violação de
um princípio fundamental da posição do Estado como «pessoa de bem» em favor da
manutenção dos benefícios de especuladores; o cardeal de Lisboa, Policarpo (o
de «muitos frutos», mas verdes ou podres) na sua condenação das manifestações
populares; mais recentemente, o enfado que o Tribunal Constitucional causou em
alguns, por vir com aquelas aborrecidas exigências de que se cumpra o que diz a
Constituição (e não faltou imediatamente nas redes sociais quem fosse buscar as
regalias dos seus juízes para provar... não se percebe o quê). Infelizmente a
lista não ficaria por aqui, mas já chegará por agora. A verdade é que uma certa
forma de encarar a vida em sociedade começa a espreitar fora da toca onde
esteve escondida algumas décadas. Com a vantagem de, pelo menos para quem ainda
não a conhecesse, se fique a saber de que é feita e o que pretende. Esta forma
de encarar a vida concebe uma sociedade em pirâmide. Mas não uma pirâmide
meramente funcional (o que, infelizmente, ainda é uma forma prática de lidar
com alguns assuntos). Antes, como uma pirâmide que representa níveis de
importância, privilégio e valor intrínsecos, nos quais os indivíduos são
arrumados, de acordo com critérios que poderemos encontrar ao nível dos
ecossistemas. É o tipo de pessoas que aprecia e, acima de tudo, necessita da
figura paternal do líder (talvez melhor dizendo, chefe), seja ele na forma de
um rei, de um ditador, de uma figura carismática. Figura sem a qual se sentem
como cães sem dono. São também pessoas que gostam da pirâmide pela sua
geometria repetitiva em múltiplos níveis: uma pirâmide pode dividir-se em
inúmeras pirâmides mais pequenas, cada qual com o seu topo. Sonham, assim, ter o
direito ao seu vértice, de onde possam imitar o grande líder, em escala
reduzida. Amantes da «ordem», da «moral» (seja ela de sacristia ou de
cofre-forte), da tradição, das hierarquias, das linhagens (onde se observa um
curioso paralelo entre a criação de gado e a criação de famílias), do estatuto;
podemos encontra-los em todos os estratos socio-económicos ou socio-culturais,
desde a senhora que limpa as escadas do nosso condomínio ao gerente do nosso
balcão bancário.
O 25 de abril é certo que trouxe
desvantagens para alguns. Algumas delas injustas, se virmos o problema de uma
perspetiva meramente particular. Não podemos deixar de compreender a revolta e
a frustração de quem perdeu tudo o que construiu com esforço e mérito próprios –
e aqui refiro-me mais especificamente às pessoas que migraram para os
ultramares, a maior parte das quais se estabeleceu já após o início dos
conflitos separatistas. Mas por aqui também podemos medir o fraquíssimo nível
de politização do povo português, totalmente ignorante do que se passava no
mundo, convencido que a redoma de Angola e Moçambique resistiria ao curso da
história. Aliás, ignorante desse mesmo curso da história. De facto, em 1961,
quando se deu a maior leva de migração para estes territórios, já a maior parte
das possessões africanas das potências europeias se encontravam independentes
ou em processo de independência. E foi precisamente a partir dessa altura que o
Estado Português se apressou a desenvolver as suas cidades ultramarinas - até
então, as possessões ultramarinas portuguesas encontravam-se num estado de
semi-abandono. Foi já na década de 1960 que se criaram as principais infra-estuturas,
e chegou até a pensar-se (imagine-se) em deslocar a capital do «império» para
fora da Metrópole – ao que parece era Nova Lisboa (atual Huambo, Angola) a
eleita para esse fim. A população nativa, no entanto, continuava praticamente arredada
da educação portuguesa, enquanto alguns prosélitos africanos já iam sendo
industriados no pseudo-marxismo soviético nas universidades russas, com o fim
de serem os timoneiros da «libertação» - os soviéticos queriam, acima de tudo,
«libertar» os africanos dos seus vastos recursos naturais.
Muitos culpam o 25 de abril pelas
asneiras que têm sido cometidas nestes trinta e tantos anos. Mas a raiz do
problema, como sempre, vem de trás. De uma sociedade que viveu atrofiada
durante décadas, sob a figura «paterna» de um homem que não soube ler o seu
próprio papel na História e logo, o momento em que devia sair de cena. Enquanto
o mundo avançava em novas direções, Portugal permaneceu amarrado a uma ficção
de cordel, brincando aos impérios, aos ranchos folclóricos e às procissões. Paternalmente
dirigido por uma cadeia tiranetes de vistas curtas, que faziam que a
sobrevivência dependesse da proteção de um qualquer padrinho. As pessoas
transportaram para os tempos da chamada democracia estes mesmos hábitos e toda
uma geração que se encontrava na força da atividade, moldou a conduta por esse
modelo.
Depois vieram os anos da lavagem
cerebral do neo-liberalismo: competitividade, produtividade, maximização,
optimização, marketing, carreira, motivação, sucesso, objetivo, planeamento,
data-chave, upgrade, workaholism, são algumas das palavras da treta, na
tenebrosa liturgia empresarial tardi-novecentista (e agora tive que ir ali
tomar uns sais de frutos para me purificar destas toxinas verbais). Escritórios
cinzentos, com senhores de fato cinzento e gravata cinzenta e damas de tailleur
cinzento, com licenciaturas cinzentas (tipo, Gestão na Católica), fazendo-se
transportar em automóveis cinzentos, de marcas cinzentas, expressando-se num
idioma cinzento, com vidinhas cinzentas, nas poucas horas cinzentas para além
dos cinzentos horários laborais, quando de regresso aos seus cinzentos bairros
de residência. Numa tentativa de acrescentar alguma cor a este cinzentismo,
fizeram-se, todos eles, grandes apreciadores e conhecedores de vinhos. Ao
invés, tornaram os vinhos, tintos ou brancos, também eles um assunto cinzento e
cheio de pomposas falácias. E uma multidão de jovens formados, desejou a cor
cinzenta também para si, e por ela se entregou à saga da competitividade e da
maximização e do upgrade, em nome de um futuro radioso (embora cinzento) que, à
frente dos seus narizes, pendia suspenso de uma vara, presa à carreta (cinzenta
mas ainda não cinzentíssima-Audi) que eles próprios puxavam – uma espécie de
cenoura, mas cinzenta. E, é bom de ver, também sobrevive com facilidade neste
ambiente o antigo sistema de apadrinhamento e língua negra. A história dá por
vezes curvas inesperadas, mas a essência das pessoas permanece basicamente
idêntica: hoje, assistimos ao humilhante espetáculo de grandes(?) empresários
portugueses genuflexos ante asquerosos caciques angolanos. Os mesmos
empresários que há uns anos, no tempo das vacas gordas (houve um tempo de vacas
gordas, sim, alguém deu por isso na altura?) babavam arrogância, agora fazem
felações aos «generais» do afro-feudalismo pós-marxista: o capitalismo tem
menos escrúpulos de que a mais relaxada rameira. É uma religião com um deus
implacável que só pode ser combatida a golpes de humanismo.
E a propósito de humanismo, o 25 de
abril foi uma iniciativa corajosa de um punhado de homens que, em termos
materiais, pouco ou nada ganhou com ela. Mesmo que se argumente que o principal
interesse dos militares na revolução tivesse a ver com motivos de carreira. Os capitães
tiraram o poder a um sistema caduco, mas não o guardaram para si, como
aconteceu na generalidade das revoluções conduzidas por militares, antes e
depois de 1974, um pouco por todo o mundo. O Conselho da Revolução, órgão de
soberania de caráter extra-ordinário, cessou as suas funções pacificamente. E os
partidos políticos constituíram-se e iniciaram as suas atividades – provando,
ao longo destes anos de democracia, não estarem, infelizmente, à altura do
papel que desempenham. Mas isto não é culpa da revolução, e sim da persistência
num modo de estar retrógrado, assente no nepotismo, na bajulação e nas vistas
de curto alcance.
A revolução de abril foi um belo momento
da nossa história. Da história do mundo, melhor dizendo. Porque condensou uma
vontade de mudança que provou ser alcançável. É, acima de tudo, uma expressão
de uma forma de estar na vida, com verdadeira liberdade – palavra tão incómoda
para tantos, por lhes ser tão inatingível. A liberdade que vem de dentro e se
estende aos outros, a quem toca.
Este ano, vão estar presentes na
Sessão Solene da Assembleia da República centenas de crianças. Pelo tom da
Presidente, apelando ao «respeito» e recusando a presença a alguns
protagonistas da revolução, parece mais um recurso de quem se quer barricar. Em
todo o caso, é melhor que nada, ainda está uns furos acima do colégio
pró-fascista com que iniciei.
Pessoalmente, gostava que o 25 de
abril fosse a nossa maior festa, enquanto nação.
Gostava que houvesse mais Salgueiros
Maias e menos Santos Antónios; mais Zeca Afonso (sentido) e menos fado
marialva.
Mas, tenho que admitir, também eu me
queixo do 25 de abril: é que chegou 40 anos atrasado.
(Texto publicado em simultâneo em Be'emoth, Skopos e Krrastzepy Verlag)