O volume 2 de O Serenador de Horas, de Paulo VAS, inicia com um poema que diz:
“(...) Não tenho nada para contar//As coisas e eu fomos um só//Tudo aconteceu entre nós//(...)// Não tenho nada para contar(...)”
“Contar”, vem do latim computare, que significava “calcular”, “estimar” e a palavra foi recuperada, já na idade moderna, para designar as máquinas que ajudavam a efectuar cálculos.
Na linguagem corrente, contar é tanto determinar o número, como narrar e esperar algo com base numa estimativa. Todos estes conceitos ou situações sugerem relações explícitas e claras de causa-efeito, lógica, sequência, “ordem natural das coisas”, conformando aquilo que hoje designamos por informação. A informação está, rapidamente, a tomar o lugar das coisas, assumindo-se como principal fonte de estímulo, em detrimento da experiência corporal.
Toda a linguagem dita assertiva, toda a afirmação clara resulta de uma simplificação. Este processo simplificador é absolutamente necessário para a “vida prática”. A vida prática é o conjunto de actividades que conformam a subsistência. Entende-se aqui por subsistência todos os degraus da pirâmide de Maslow, à excepção do último, que pode ou não existir, consoante o indivíduo (formando uma pirâmide truncada), e inclui não só as necessidades básicas de segurança, alimentação, mas também a realização pessoal e afirmação social. O último degrau é assim reservado para aquilo que não tem utilidade prática e que pode existir apenas na esfera interior do indivíduo.
A poesia pode ser vista como a linguagem desligada da subsistência, nos termos acima definidos, ainda que possa usar, e inevitavelmente use, os termos, temas e formas de expressão que são próprias desse conjunto de actividades práticas. É uma linguagem corporal em que as palavras são, antes de mais, gestos e, menos, signos com uma função rigidamente definida de significante/significado.
A linguagem poética do Paulo ecoa de uma oscilação numa topografia contínua e contaminada pelos pólos opostos que delimitam esses territórios, e que permanecem simultaneamente misturados e imiscíveis.
Esses terrenos estendem-se
no tempo: passado e presente
no espaço: longe e perto
na consciência: sonho - realidade - memória
na ontologia: ser - existir - morte
Estes são os espaços de encontro entre a realidade e a percepção, livres dos dispositivos organizadores - pré-concepções, classificações, causa-efeito - que traduzem o condicionamento intelectual e social.
Essa liberdade/libertação gera um movimento que é fluido, de uma matéria que passa a ser plástica.
Por outro lado, é usada com frequência uma forma de designação auto-descritiva:
“A luz na água”
“O cabelo, a minha companhia no cemitério"
“O vento, a hesitar no musgo e nas fendas da parede”
“Há quanto tempo estão ali aqueles limões?”
Estas frases, simples, gramaticamente não descritivas, convocam uma cumplicidade com o leitor, que as apreende como imagens falantes, dispensando outras palavras e adjectivações.